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O encontro: Educação social no palco sociodramático

Aprendizagens soltas surgem nas histórias de egos auxiliares. No desejo de um encontro e reencontro para alicerçar o aprendizado, os técnicos de educação social (que vivenciaram o papel de ego-auxiliar) falam de um renascimento como energia impulsionadora que permitiu o desenvolvimento destes profissionais enquanto investigadores, profissionais de terreno, técnicos de relação, mediadores de grupo, facilitadores de empoderamento…
Olhando detalhadamente para o Sociodrama e Educação Social encontramos água salobra entre ambas. Estas secreções da criação humana reencontram-se entre o doce e o sal. Jamais quereremos entrar em conflito entre estes saberes, antes, uma reflexão sobre os pontos comuns.
Saem da boca palavras atiradas ao ar: complexidade da realidade; capacidade de se descentrar; modelos de referência; saber perguntar; saber escutar; autorreflexão; criatividade e a metodologia de investigação ação participante (IAP). Todavia estes conceitos carecem de um laço que consolide o seu entendimento.
No sentido figurado de renascimento de que falamos, surgem à luz dois caminhos que se cruzam e que fortalecem o nosso saber - trilho metodológico e teórico – e que as palavras soltas entrelaçam-se em cada uma delas.
Trilho Metodológico  

A sinapse: Sociodrama e Investigação-ação participante

 

No espaço sociodramático onde os participantes assumem o leme das suas próprias preocupações, necessidades ou problemas a analisar e/ou a tratar , ao invés de uma posição diretiva, expositiva e demonstrativa da parte do diretor, o que nos faz recordar o processo de investigação ação participante (IAP), metodologia de eleição para muitos dos Educadores Sociais - e para tantos outros profissionais cuja fonte surge do paradigma sociocrítico. Embora não seja muito comum a utilização da expressão IAP na linguagem sociodramática pode-se reconhecer uma correspondência perfeita, sendo o palco um espaço de contacto entre estes “neurónios”
A essência da IAP surge do pensamento de Kurt Lewin e que pressupõe três núcleos que estabelecem relações entre eles: “o de ação, que tem como objetivo atingir a mudança social num contexto concreto; o da investigação, centrado na procura das dinâmicas atuais e nas intencionalidades dos atores; e o da formação, que é inerente ao próprio processo de conhecimento e ação, mobilizando as capacidades cognitivas e relacionais dos atores em função de objetivos específicos.” (Guerra, 2000, p. 57).
Se o sociodrama, nas suas ações, pretende alcançar a espontaneidade e a criatividade, rompendo com situações sine quibos non, não estará longe da linha de pensamento de Kurt Lewin. O diretor/orientador assume este compromisso enquanto catalisador da dinâmica grupal. A IAP, tal qual sociodrama,  é “uma metodologia que conta com a participação, que recupere a fala dos agentes sociais; todos podem questionar acerca da sua realidade, todos podem dizer algo da sua realidade.” (Cembranos, Montesinos, & Bustelo, 2001, p. 30)Desta forma inicia-se processos de investigação. No sociodrama o grupo é levado a analisar um determinado problema, onde a dimensão afectiva, cognitiva e psicomotora geram motivação, interesse e liberdade. “O sociodrama é, pois, uma metodologia de pesquisa ativa e traz, portanto, as significações presentes nas relações, o discurso compartilhado, e um processo dialógico com intensa troca de conteúdos psíquicos, atitudinais e comportamentais entre as pessoas no propósito conjunto de solucionar determinados conflitos. ” (Nery, 2006, p. 307) São nestes núcleos entre a ação e investigação, compreendendo processos dialécticos, que  se produzem novas formas de ser, estar e pensar.

Trilho teórico

Universos: do real ao imaginário há possibilidade no campo de intervenção

A dramatização é a ação que mais se aproxima da realidade, com a vida, na medida em que permite recriar, simbolizar e representar situações do quotidiano (“como se”) contudo, a dramatização não é a realidade, “ Não se trata de abandonar o universo do imaginário em favor do universo da realidade (…) mas antes definir os meios pelos quais o indivíduo pode adquirir um completo domínio de uma situação, vivendo nas duas vias e capaz de passar de uma para a outra” (Moreno, 1970, cit. Aguilar, 2001)
Neste processo interpessoal que se vivenciou enquanto ego-auxiliar existiram dois domínios que promoveram o nosso crescimento. Se por um lado permitiu-nos contemplar realidades complexas por outro, e a partir das mesmas, facilmente os protagonistas passavam para a realidade bebendo das experiências do contexto sociodramático. Olharemos mais detalhadamente para estes dois domínios:
a)      A vivência de narrativas que emergiram nos contextos sociodramáticos permitiram ao educador social, que integra a unidade funcional, compreender realidades que estiveram longe dos seus campos de intervenção. Apesar de existirem contextos idênticos e que de alguma forma conduzem a ideias estereotipadas (algumas certificam-se, outras não) é no contexto sociodramático, que se pressupõe uma relação dialógica, que se quebra com as nossas ideias pré-formadas, as opiniões originais e, fundamentalmente, se olha para as situações a partir de um outro prisma nunca antes considerado. O raciocínio dos protagonistas surge com as emoções e o cruzamento da observação do auditório alarga em muito a perceção complexa da realidade, que teria sido redutora pelo único par de olhos que possuímos. São nestes exercícios contínuos que faz crescer uma visão bio-psicossocial e sistémica das situações e a sua correlação. Por tudo isto, a nossa visão acerca do mundo torna-se mais coerente com as realidades.
b)      Quando os protagonistas no “como se” vivenciavam simbolicamente o real na procura de alternativas, de possíveis soluções para os seus problemas facilmente conduziam os seus comportamentos com os insights que vivenciavam no processo sociodramático respondendo (possivelmente) de forma espontânea ao contexto social. Foram muitos os exemplos da mudança nas respostas dos protagonistas (alunos que estavam a desenvolver os seus projetos de intervenção social) que aconteceu porque se prestava atenção a determinados factos, se examinava as partes constituintes, observávamos, criticávamos e comentávamos.

Tudo isto não passa de uma análise da realidade e existe um propósito ao colocar este conceito neste nosso discurso. Entendemos por análise da realidade (comummente designados por fase de diagnóstico) um momento do desenho e desenvolvimento de projetos sociais onde se conta com a elevada participação do colectivo; a relação entre o estudo e a ação, a consideração dinâmica da realidade, a utilidade da informação que se obtém partindo sempre da ação para a investigação e da investigação para a ação, pois,  a “investigação e a intervenção devem estar estreitamente ligadas” (Maisonneuve, 2004, p.16)  tal como acontece no processo sociodramático. Demos ênfase à análise da realidade, a título de exemplo, mas pode ser  transversal ao longo do processo dos projetos sociais.
Em boa verdade, vivenciar o papel de ego-auxiliar permitiu-nos desenvolver competências e ganhar consciência que metodologias ativas, como o sociodrama, torna sem dúvida projetos sociais muito mais eficientes e eficazes.

  

Calçar o sapato do outro

Quando se integra vários pontos de vista com facilidade temos capacidade de colocar mais hipóteses sobre a situação, conseguimos descentrar daquilo que somos e captar a visão do mundo interno da outra pessoa. Antes de sermos educadores sociais, antes de sermos egos-auxiliares, fomos e somos pessoas e a dificuldade de descentração depende da história de vida de cada um e das (re)configurações que fazemos . Se por alguma razão os sentimentos de interesse, dedicação e disponibilidade, por outrem, não estiverem desenvolvidos, possivelmente, teremos dificuldade em nos descentrarmos. Falar na capacidade de se descentrar remete-nos para a empatia (capacidade inata de qualquer ser humano se colocar no lugar do outro) mas, é desenvolvida pela soma de novas estruturas cognitivas que nos permite experienciar de forma renovada e mais autêntica a visão do mundo. Porém, não podemos encerrar este momento pelas aprendizagens intelectuais. É relevante ensaiar internamente reações emocionais geradas pelas situações e tentar perceber o que sentem os protagonistas . São nestes concertos, entre a razão e a emoção, que melhor o nosso pé se adapta para calçar o sapato do outro.

Auto-controlo e Saber Escutar

Foi no “aqui e no agora”, no “como se” facultados pelo processo sociodramático que reconhecemos a pertinência de certas condições interpessoais que consideramos indispensáveis para quem orienta grupos.
Se olharmos ao redor das nossas vidas verificamos movimentos contantes dos modelos convencionais nas instituições socioeducativas, que se colam aos princípios: paternalista, autoritário, dominante e opressor à liberdade humana. Penso que será comum a muitos outros educadores sociais (e a outros actores sociais) que, tal como nós, durante seu desenvolvimento, desde tenra idade, foram habituados a ser simples telas, onde a memorização, o saber-saber, o conformismo e a distancia afetiva dos conteúdos foram a tónica no ensino-aprendizagem. No espaço sociodramático (também ele espaço formativo) em muitos momentos sente-se a vontade de saltar para a boca de cena e dar o cunho pessoal, de sentir poder e afirmação. Talvez estas vontades emergiam na tentativa de reproduzir (consciente ou inconsciente) determinados modelos que nos acompanharam até aos tempos académicos, perpetuando a mesma conserva cultural. Apesar deste “mal-estar” um trabalho contínuo é necessário para que prevaleça uma outra posição que não a culturalmente dominante. Contudo, aprende-se a controlar as emoções, contrariamos posições ganhando a consciência e a compreensão da importância da circulação da comunicação, realçando as informações que o grupo tem sobre uma determinado tema. Para isso, há que ser curioso e saber fazer perguntas (Esmorecendo a tendência interpretativa e acedendo, paralelamente, às representações mentais dos participantes). Todavia as perguntas/ respostas jamais poderão ser duais -  Diretor/ator. É preciso trazer vida à dinâmica grupal e pra tal aconteça o diretor deverá devolver as perguntas ao grupo de forma a favorecer a comunicação, a tomada da perspetiva social, causando possíveis mudanças nos sistemas.
Cientes que o saber escutar “apreendido” durante a formação fica limitado na fronteira do saber-saber, sendo a linha do tempo escassa para o seu progresso, este contexto metodológico contribui, em larga medida, para o seu desenvolvimento. “Ouvir exige, antes de mais nada, que não estejamos preocupados, pois se estivermos, não podemos dar uma atenção plena. Em segundo lugar, ouvir implica escutar o modo como as coisas são ditas, o tom usado, as expressões, os gestos empregos. E mais, ouvir inclui o esforço de perceber o que não está a ser dito, o que apenas é sugerido, o que está oculto, o que está abaixo e acima da superfície. Ouvimos com os nossos ouvidos, mas escutamos também com os nossos olhos, coração, mente e vísceras.” (Benjamim, 1978, p. 68)
Em cada ida para as sessões começámos por colocar os nossos órgãos em sintonia. Percebemos com o coração as palavras trêmulas causadoras tensões internas que ansiavam ser resolvidas. Olhámos para as lágrimas que brotavam angústias traduzindo estados de alma. Ouvíamos desvios de temas que afligiam ganhando formas de resistência. Reparámos nas pequenas  tentativas para abrir a cortina do trama interno, ofuscadas por palavras mascaradas. Observámos corpos ausentes e olhares distantes e cabisbaixos, que vertiam dúvidas causadoras de incómodos. Sentimos o silêncio de reprovação que acompanhavam olhares fechados e olhos sorridentes e abertos de aceitação. 
Aos poucos e poucos começamos a encontrar sentido que o saber escutar comporta e as hipóteses que colocavamos, aos poucos e poucos (não fossem as resistências), eram confirmadas ou infirmadas. Percebemos que seria este o caminho para atingir o propósito do saber escutar mas que exige uma prática contínua.

Da proximidade  à promoção da participação

Antes de falarmos propriamente do assunto gostaríamos de viajar pelo mundo d’ O Principezinho de Saint – Exúpery. Relembremos a passagem do pequeno príncipe pelo sexto planeta, onde encontra o velho geógrafo e lhe pergunta se sabe se no seu planeta há mar, rios, montanhas, ao que aquele lhe responde: Não faço ideia.
Ao contrário do velho geógrafo o diretor está implicado e faz parte da natureza sociodramática. Relaciona-se com os protagonistas, com o auditório, está próximo dos problemas deles, escuta-os, acompanha-os nas dificuldades, faz circular a comunicação, os pensamentos de forma a acrescentar aos pensamentos novas ideias, estimula a participação para pincelarem um quadro comum, criando assim novas obras de arte.
É nesta situação que reside a aprendizagem, no vivenciar de perto, num formato concreto e exemplar, a prática de  “relações mais informais e menos distantes, aproveitando as aptidões e os conhecimentos para encorajar e contribuir para a participação do cliente.” (Payne, 2002, p.126). Assistimos a relações de proximidade que não deverão ser confundidas com a intimidade e a amizade, pois, pela nossa experiência,  existem  trabalhadores sociais que ao caírem nesse enredo, revelam dificuldades em manter um distanciamento emocional.
Entende-se nesta relação sociodramática uma intervenção desenvolvida com os elementos do grupo, que pretende responder a uma pluralidade de situações reais e afetivas - ao contrário de algumas intervenções sociais pradonizadas sem terem em conta a singularidade e a especificidade do grupo - suscetível de se tornar estéril e pouco estimulante. Esta situação remete-nos para duas preposições: com e para. Trabalhar com as pessoas é, sem dúvida, uma fórmula estimulante de fomento da participação, em que os indivíduos se tornam sujeitos ativos do seu próprio desenvolvimento, ao contrário de um trabalho para, cujas respostas talvez fossem semelhantes às do velho geógrafo.
A propósito destas preposições Paulo Freire faz duas distinções entre a educação bancária e a libertadora. A primeira os “educandos passivos recebem depósitos de conhecimento pré-selecionado e acabado (...) Trata-se de uma prática imobilizadora, reprodutora e ocultadora da realidade”. A segunda, “encoraja os educandos a desafiar e mudar o mundo, e a recusarem adaptar-se a ele de modo acrítico (...)e que através do dialógo, trabalham para o empowerment.”. (Heaney, 2005, s/p, cit Macedo et. Al.,  2001,p. 140)
Para nós, enquanto educadores sociais, identificamo-nos com a metodologia sociodramática que privilegia um trabalho com as pessoas no sentido de desenvolver a sua espontaneidade e criatividade, ao contrário da educação bancária que defende a manutenção do status quo.
Termos tido a oportunidade de desempenhar o papel de ego permitiu-nos observar a forma e o conteúdo da relação estabelecida entre o director e o auditório, adotar (e talvez reinventar) esses modelos, a importância de trazer à dinâmica  grupal os problemas reais , sendo perspetivados como oportunidades, promovendo, paralelamente a participação.

Conclusão
Desempenhar o papel de ego-auxiliar permitiu-nos estar mais familiarizado com os conhecimentos básicos da nossa formação, a sistematiza-los e a integra-los. Entre sucessivos movimentos entre a ação e a reflexão emergiram à consciência determinadas competências contribuindo para o nosso crescimento profissional, social e pessoal.
Foi no “aqui e no agora”, no “como se”, facultadas pelo processo sociodramático que reconhecemos a pertinência de certas condições interpessoais que considerámos indispensável para quem orienta grupos.
E  para quem orienta grupos, assim como nós, educadores sociais, a importância de partir de situações concretas  para fazer emergir todo um tecido cultural e social do qual os indivíduos são parte integrante. Com isso, tentar capacitar os indivíduos, dando-lhes oportunidade de participarem - a serem pintores dos seus próprios quadros - desenvolvendo, simultaneamente, a comunicação intergrupal favorecendo a consciência crítica sobre a complexidade humana podendo conduzir a respostas espontâneas e criativas.










Bibliografia

Aguilar, L. F. (2001). Expressão e Educação Dramática . Instituto de Inovação educacional .
Benjamim, A. (1978). A entrevista de ajuda . S. Paulo : Livraria Martins Fontes editora Ldtª .
Cembranos, F., Montesinos, D. H., & Bustelo, M. (2001). La Animación Sociocultural: Una propuesta metodológica (3ª Edição ed.). Madrid: Editorial Popular, S.A.
Guerra, I. C. (2000). Fundamentos e Processos de Uma Sociologia de Acção - O Planeamento em Ciências Sociais. Cascais : Principia .
Macedo, E., Vasconcelos, L., Evans, M., Lacerda, M., & Pinto, M. V. (2001 ). Revisitando Paulo Freire - Sentidos na Educação . Porto : Edições ASA.
Maisonneuve, J. (2004). A Dinâmica dos Grupos. Lisboa : Livros do Brasil .
Nery, M. d. (2006). O Sociodrama como Método de Pesquisa Qualitativa. Paidéia, pp. 305-313.
Payne, M. (2002). Teoria do trabalho Social Moderno . Coimbra : Editora Quarteto .


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